Nós aprendemos quem somos através do que os outros nos mostram. Os outros refletem sempre quem somos.

Isto é de extrema importância sobretudo nos primeiros anos de vida, quando somos capazes de comunicar unicamente através das nossas emoções.

Mas como pode um adulto mostrar-nos amor próprio e autoestima, quando as suas necessidades básicas não estão preenchidas? Quando o próprio adulto, pai e mãe, necessitam do amor dos outros para serem validados?

Se o pai ou mãe são incapazes de amor-próprio irão procurar satisfazer as suas necessidades básicas através do filho. Precisam do filho para se sentirem amados. É aqui que tem início a vergonha tóxica.

A família vive de acordo com uma série de regras que nunca são faladas mas são o berço da vergonha tóxica.

Segundo John Bradshaw, as regras vividas pela família, e que provocam a vergonha tóxica, são as seguintes:

Controle ou caos: o progenitor tem que controlar todas as situações e comportamentos a todos os momentos. O controlo passa a ser a estratégia de defesa para a criação da vergonha. A criança aprende assim a viver num mundo governado pelo caos, porque nunca sabe o que está certo ou errado no seu comportamento, dependendo sempre do estado de espírito do progenitor;

Perfeccionismo: o progenitor tem que ter sempre razão. Para ter sempre razão o progenitor usa diferentes pesos e medidas, impedindo a criança de saber quando o seu comportamento é adequado. E, invariavelmente, a criança nunca consegue satisfazer as necessidades de perfeccionismo do progenitor. Num ambiente em que as regras são continuamente alteradas, a criança aprende que é falhada, incompleta;

Culpa: sempre que as coisas não correm de acordo com os padrões do progenitor, este culpa a criança. Esta atitude de culpar os outros é mais um mecanismo de defesa da vergonha tóxica;

Negação da liberdade: a necessidade de um falso perfeccionismo leva à quebra das liberdades mais básicas da criança. Isto diz à criança que não tem o direito de apreender a realidade tal como ela é, não tem o direito de pensar e sentir livremente, não pode ter desejos para além dos acordados em silêncio pelos progenitores, nem poderá ser imaginativa. Tudo isto deverá ser feito apenas de acordo com o perfeccionismo invisível do progenitor;

Proibido falar: esta regra exige que a criança nunca expresse a totalidade dos seus sentimentos, necessidades e desejos. Assim, a criança, tal como o progenitor, está proibida de falar da sua solidão ou da sua verdadeira identidade;

Proibido cometer erros: os erros revelam um eu incompleto, com falhas e vulnerável. Ao assumir um erro, o adulto expõe-se ao ridículo. Da mesma forma, como não quer esta experiência, o progenitor procura os erros na criança;

Proibido ouvir: todas as pessoas na família encontram-se tão ocupadas a defenderem-se ou a desempenhar um determinado papel, que ninguém ouve ninguém. Quando a criança fala das suas necessidades, o progenitor ouve apenas as suas necessidades (preciso que estejas calado, preciso que sejas bom aluno, preciso que tenhas saúde, preciso que sejas bem educado – estes precisos são uma forma de dizer que o progenitor só consegue alguma paz quando o comportamento da criança é o desejado. A criança é amada por fingir e não por revelar quem é de verdade);

Infidelidade: o pais  ensina a criança a não confiar nos outros. Fá-lo de uma maneira velada, ou abusiva. A relação entre o pai e a mãe ensina a criança a não confiar nos relacionamentos íntimos (a mãe que fica triste quando o pai chega tarde a casa, o pai que discute porque a mãe gasta mais dinheiro, etc.). Por outro lado, o progenitor que abandona a criança mostra-lhe que aqueles de quem depende para a sua sobrevivência, não estão presentes. Há muitas formas de abandono, desde o mais violento (abuso físico da integridade da criança) até ao abandono quando a criança necessita de ser ouvida e o progenitor prefere ver televisão;

O mundo é um lugar perigoso: uma vez que ninguém ouve nem confia, e tudo é imprevisível, a criança aprende que o mundo é um lugar perigoso onde nunca se sabe como ser autêntico.

É assim que a pedagogia tóxica é exercida pelos progenitores, há milhares de anos. Basicamente os progenitores ensinam a criança que:

Os adultos são senhores absolutos das crianças e estas são inteiramente dependentes;os adultos é que determinam o que está certo e errado; a criança é responsável pelos acessos de fúria dos pais; os pais devem esconder continuamente os seus sentimentos; os sentimentos verdadeiros da criança são uma ameaça para os pais; as necessidades emocionais da criança deverão ser secundárias ao bem-estar dos pais;

Tudo isto deverá acontecer nos primeiros dois ou três anos de vida da criança, por forma a que ela não consiga descobrir as falhas e, assim, não exponha os adultos ao ridículo.

A vergonha tóxica é libertada seguindo regras precisas e nunca faladas. Um exemplo disto é quem pode maltratar quem. Por exemplo, o pai é o que pode falar mais alto em casa, e discordar de tudo e todos. A mãe pode falar mais alto e discordar de tudo e todos, exceto o pai. O filho mais velho pode falar mais alto e discordar de tudo e todos, exceto o pai e a mãe. Eventualmente chegamos ao filho mais novo, que pode maltratar o gato.

Como os pais começaram a sua relação partindo de necessidades que ninguém pode preencher (de amor-próprio e autoestima), irão cada um procurar no outro o preenchimento dessas necessidades. No fundo são dois adultos-criança à procura de um pai e uma mãe no outro. Eventualmente descobrem que o outro não consegue preencher as suas necessidades. Muitas vezes o próprio adulto não tem a coragem de afirmar quais as suas necessidades. Tem medo do abandono se afirmar o que deseja do outro. Espera que o outro adivinhe.

Quando um filho nasce, ambos os progenitores procuram satisfazer as suas necessidades através da criança. Pervertem a hierarquia natural da família. Assim, o comportamento da criança irá ditar o comportamento do adulto.

A criança sabe instintivamente que as suas emoções são saudáveis, precisa de um adulto que a ensine que estas emoções são erradas. Gritar é errado. Alegria excessiva é errado. Tirar uma negativa é errado. Falar mal dos outros é errado. E entretanto é este o exemplo que os progenitores dão à criança.

Apenas com o intuito de elucidar os pais, descrevo brevemente de que maneira cada emoção rotulada de negativa é realmente saudável:

A raiva é a energia que nos dá força. O incrível hulk torna-se poderoso e ajuda os fracos depois de um acesso de fúria;

A tristeza é a energia que nos permite curar a dor de um evento. Libertamos a dor de uma perda através da tristeza. Os pais evitam a tristeza (criando mais tristeza) porque não querem sentir a vergonha de mostrarem vulnerabilidade;

O medo liberta em nós a energia que nos previne de possíveis perigos. Ao ridicularizar a criança com medo, o adulto ensina a criança a esconder uma parte vital de si. O medo saudável leva-nos à nossa sabedoria interior;

A culpa é o nosso juiz que nos informa da nossa responsabilidade. Diz-nos quando violamos a nossa integridade e a dos outros. Empurra-nos para a mudança. Como os pais não sabem lidar com a mudança usam a culpa para impedir o crescimento saudável da criança;

A vergonha ensina-nos a evitar sermos perfeitos ou mais que humanos. A vergonha assinala os nossos limites;

A alegria é a emoção que surge quando todas as nossas necessidades se encontram preenchidas. A criança quer cantar, pular, saltar. Mostra que tudo está bem;

O desespero é a emoção que procura equilibrar as nossas necessidades básicas. É o desespero que nos leva a procurar alimento, água, conforto. Mas quando mostramos à criança que este comportamento é inadequado, ensinamos-lhe a preocupação e o preconceito. O desespero doente leva a muitos comportamentos disfuncionais da nossa sexualidade;

O descontentamento segue um padrão idêntico ao desespero. Inicialmente era útil para procurar alimento, por exemplo. Hoje em dia é utilizado de maneira pouco saudável numa separação. As vitimas de abusos carregam ás costas vários níveis de descontentamento tóxico. Os violadores e assassinos fazem o que fazem impelidos por níveis elevados de descontentamento, raiva e desespero.

Quando os pais são incapazes de amar a criança por demonstrar abertamente as suas emoções, ensinam-me a esconder quem ela é de verdade. A criança passa a desempenhar o papel de pai, na medida em que é responsável pela resposta emocional do progenitor.

 

Começamos assim a compreender que enquanto precisarmos que um filho esteja bem (de acordo com os padrões e necessidades individuais de cada progenitor) para nós estarmos bem, esse filho será nosso refém.